sábado, outubro 31, 2015
Caio Fernando Abreu - Pequenas Epifanias
Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de “minha vida”. Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus — enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro. Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos. Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas. Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — “Tentação” — na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível.” Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele para. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece. De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito joias encravadas no dia a dia. Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.
O Estado de S. Paulo, 22/4/1986
domingo, outubro 18, 2015
Sobre esse outubro.
Já fazia tanto, que deixou de ser vivo.
Ao tomar forma outra vez, temo, respeito e arrisco.
É como o que almejo e por isso, confunde com projeção.
Agradecida, deixo durar como vidas o que dura instantes.
As batidas do surdo do meu coração voltam a fazer pulsar.
Respiro fundo.
Me sinto grata.
terça-feira, agosto 25, 2015
Casa de Marimbondo
Quando eu falo de você e não deixo meus olhos explicarem
é porque sinto a necessidade de parecer um conto.
Ao tocar suas músicas, todas elas, e perceber meus parágrafos
eu falho e canso.
Desisto por própria vergonha de expor meu canto que,
por todos os ângulos, me parece pranto.
Se eu sonho e não conto é porque meus enganos
me tiram os panos que cobrem meus planos de anos.
Quando lembro e sorrio é meu martírio e, mesmo sabendo,
de frente pro rio eu engano a maré que sou eu.
Então vago na luz mais escura que ilumina as ruas e não se chama luar.
Ao dia caminho em corrida numa maratona vazia contra meu próprio pensar.
Se vacilo, me ponho raízes que ficam expostas pro meu próprio penar.
Os meus medos são meus preconceitos. Eu não posso ter zelo pelo que me tira o ar.
Invisível é bem o que sinto. Quando poem eu tiro só pra não reprisar.
Já faz tempo e com relógios lentos eu me atraso na hora de te acertar.
Se esqueço é só um barato. Eu te deixo de lado pra poder me centralizar.
O meu foco há dias é faca que me fura e me rasga pra me deixa vazar.
Quando eu encho eu não transbordo porque essa palavra é sinônimo de amar.
Quando encho, eu encho do vazio que eu não crio mas venho alimentar.
é porque sinto a necessidade de parecer um conto.
Ao tocar suas músicas, todas elas, e perceber meus parágrafos
eu falho e canso.
Desisto por própria vergonha de expor meu canto que,
por todos os ângulos, me parece pranto.
Se eu sonho e não conto é porque meus enganos
me tiram os panos que cobrem meus planos de anos.
Quando lembro e sorrio é meu martírio e, mesmo sabendo,
de frente pro rio eu engano a maré que sou eu.
Então vago na luz mais escura que ilumina as ruas e não se chama luar.
Ao dia caminho em corrida numa maratona vazia contra meu próprio pensar.
Se vacilo, me ponho raízes que ficam expostas pro meu próprio penar.
Os meus medos são meus preconceitos. Eu não posso ter zelo pelo que me tira o ar.
Invisível é bem o que sinto. Quando poem eu tiro só pra não reprisar.
Já faz tempo e com relógios lentos eu me atraso na hora de te acertar.
Se esqueço é só um barato. Eu te deixo de lado pra poder me centralizar.
O meu foco há dias é faca que me fura e me rasga pra me deixa vazar.
Quando eu encho eu não transbordo porque essa palavra é sinônimo de amar.
Quando encho, eu encho do vazio que eu não crio mas venho alimentar.
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